Porque é que Putin está a tentar atribuir o ataque do Concert Hall a Kyiv e ao Ocidente

Na narrativa do presidente russo, há pouco espaço para um atentado mortal perpetrado por extremistas islâmicos.
Porque é que Putin está a tentar atribuir o ataque do Concert Hall a Kyiv e ao Ocidente
kremlin.ru [CC BY 4.0 DEED]
Este artigo foi publicado há, pelo menos, 2 anos, pelo que o seu conteúdo pode estar desatualizado.

Este artigo é uma tradução para português de Portugal de um artigo em inglês da Radio Free Europe/Radio Liberty (RFE/RL).

No seu primeiro discurso após o ataque a uma sala de concertos nos arredores de Moscovo, a 22 de março, mais de 18 horas depois de homens armados terem matado pelo menos 139 pessoas no ataque terrorista mais mortífero registado na Rússia nos últimos 20 anos, o presidente Vladimir Putin não fez qualquer referência ao grupo extremista “Estado Islâmico” (Daesh), que já tinha reivindicado a responsabilidade.

No entanto, referiu-se à Ucrânia, afirmando que Kyiv tinha aberto uma “janela” na fronteira entre os dois países para que os terroristas pudessem tentar fugir. Não apresentou provas.

Em declarações posteriores, ao final do dia 25 de março, Putin afirmou que “islamistas radicais” tinham levado a cabo o ataque, cuja autoria foi atribuída pelos Estados Unidos ao “Estado Islâmico-Khorasan”, uma filial do Daesh. Mas também reiterou as insinuações de que a Ucrânia teria contribuído para o ataque – e apontou o dedo aos Estados Unidos e ao Ocidente.

Reação na rede social X (ex-Twitter) do analista Mark Galeotti.

Para além de outras afirmações claramente destinadas a convencer os russos de que a Ucrânia e o Ocidente estavam por detrás do ataque, Putin disse que os Estados Unidos estavam “a utilizar todos os canais para tentar convencer os seus satélites e outros países… de que não há qualquer indicação de envolvimento de Kiev”. E sugeriu que o ataque fazia parte do que ele descreveu como esforços da Ucrânia, “cumprindo as ordens dos seus manipuladores ocidentais”, para “semear o pânico” na Rússia, à medida que as forças de Moscovo avançam na invasão do seu vizinho.

Entretanto, os meios de comunicação social estatais russos têm defendido avidamente a ideia de que a Ucrânia e o Ocidente estão por detrás do ataque, tal como altos funcionários e legisladores. Numa breve troca de mensagens publicada no Telegram, um repórter perguntou ao Secretário do Conselho de Segurança e aliado próximo de Putin, Nikolai Patrushev, “Daesh ou Ucrânia?” e Patrushev respondeu: “Ucrânia, claro!”.

Atribuir culpas a países estrangeiros por coisas que acontecem na Rússia – desde ataques terroristas a protestos pacíficos da oposição – não é novidade para Putin. Já o faz desde pelo menos 2004, depois da crise de reféns que causou a morte de mais de 330 pessoas numa escola na cidade de Beslan, no sul do país, insinuando que Washington e o Ocidente estavam a apoiar militantes islâmicos no Cáucaso do Norte, num esforço para enfraquecer a Rússia.

Mas, desta vez, os riscos podem ser particularmente elevados: Putin acaba de garantir um novo mandato de seis anos, numa eleição marcada por indícios de fraude em larga escala, e a sua decisão de lançar uma invasão total da Ucrânia conduziu a uma guerra longa e extenuante, com centenas de milhares de baixas russas em vez da rápida subjugação de Kyiv que ele aparentemente esperava.

Eis algumas das razões pelas quais Putin está a apontar o dedo a Kyiv e ao Ocidente no ataque ao Crocus Concert Hall.

A Narrativa

Desde o início da invasão em grande escala, em fevereiro de 2022, Putin tem tentado transformar a Rússia num país onde o clima de guerra é uma questão natural, um facto da vida, usando-o para reforçar o seu controlo sobre o país. O seu porta-voz, Dmitry Peskov, apelou recentemente à “mobilização interna”, sugerindo que os russos não deveriam apenas apoiar a guerra exteriormente, mas acreditar nela como uma questão de fé – uma sugestão surpreendente, dado que, para a maioria dos russos, o apoio à guerra é passivo e sem entusiasmo pessoal.

YouTube RFE/RL

Cada vez mais, Putin tem procurado convencer os cidadãos de que o país não está a travar uma guerra de agressão contra a Ucrânia, mas sim uma guerra defensiva crucial do ponto de vista existencial em que a Ucrânia é apenas um instrumento nas mãos de Washington e do Ocidente, que estão empenhados em dominar ou destruir a Rússia. Esta visão é reforçada através de leis que o Estado tem vindo a utilizar para silenciar os russos que criticam ou questionam a guerra na Ucrânia.

Nessa narrativa, há pouco espaço para um ataque mortal de extremistas islâmicos. O ataque ao Crocus Concert Hall pode sugerir que Putin está a distrair-se de ameaças mais iminentes, ou mais reais, do que aquelas que diz serem colocadas pelo Ocidente.

O “Fracasso”

Neste contexto, sugerir que o ataque foi, em última análise, uma ação do Ocidente pode ser uma tentativa de suavizar o golpe, por mais simbólico que seja, do que o membro do grupo de reflexão do Conselho Atlântico e antigo embaixador dos EUA em Moscovo Alexander Vershbow diz ser uma “grave falha dos serviços secretos”.

A ausência de uma ameaça deste tipo seria particularmente difícil de explicar à luz do facto de, no início de março, os Estados Unidos terem avisado a Rússia de informações que indicavam que os extremistas tinham “planos iminentes” para um atentado – e do facto de Putin, três dias antes de acontecer, ter rejeitado publicamente o aviso como um tentativa “provocadora” de “intimidar e desestabilizar a nossa sociedade”.

Assim, um dos motivos para sugerir que os Estados Unidos podem ter tido um papel no atentado poderá ter sido o de enquadrar o aviso dos EUA (feito antes das eleições presidenciais de entre 15 e 17 de março) numa narrativa mais ampla de uma guerra em que os adversários da Rússia não poupariam esforços para obter vantagem.

A Ucrânia negou qualquer papel no atentado e a porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA Adrienne Watson referiu a 24 de março que “não houve qualquer envolvimento ucraniano”.

O Dilema

Embora não existam provas evidentes de uma ligação com a Ucrânia, há uma ligação clara com a Ásia Central: as autoridades russas detiveram pelo menos 11 pessoas e ordenaram que oito delas fossem mantidas em prisão preventiva, incluindo quatro cidadãos do Tajiquistão acusados de serem os autores dos disparos.

Uma vez que a Rússia depende substancialmente de trabalhadores migrantes do Tajiquistão e de outros países da Ásia Central, a identidade dos alegados suspeitos representa “um sério dilema político” para Putin, afirma Mark Galeotti, um analista da política russa e de questões de segurança.

“Se ele disser: ‘Sim, foi o Estado Islâmico que agiu através de cidadãos da Ásia Central e de trabalhadores migrantes’, então, em primeiro lugar, isso agrava as tensões raciais, o que é uma questão problemática num Estado multiétnico e multiconfessional como é a Federação Russa, onde 10% da população é muçulmana. Mas também levanta a questão: O que é que se vai fazer em relação a isso?”, diz.

“O resultado inevitável seria uma espécie de repressão contra os centro-asiáticos, que, como sabemos por experiências anteriores, seria tratada de uma forma bastante brutal e insensível”, referiu. “Neste momento, a Rússia não se pode dar ao luxo de alienar e expulsar estes trabalhadores da Ásia Central – ela precisa deles…. Entre o impacto da guerra e a necessidade de ter as fábricas de defesa a funcionar a todo o vapor, há, de facto, uma escassez de mão de obra”, acrescentou.

O ataque agravou as tensões étnicas, e a exibição pública de imagens gráficas que parecem mostrar os agentes de segurança russos a abusar dos detidos pode ter como objetivo acalmar qualquer desejo de vingança. Mas Putin pode estar à espera de evitar medidas mais amplas, como a imposição de restrições mais pesadas à entrada na Rússia de cidadãos do Tajiquistão e dos seus vizinhos, explica Galeotti, porque isso “prejudicaria a economia russa e a posição da Rússia junto dos seus aliados cruciais da Ásia Central”.

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